
Posicionamento: Prescrição Dietética
02/12/2016
Possibilidades legal e técnica de médicos prescreverem dietas.
Inabilidade, inaptidão e ilegalidade de médicos com especialização em Nutrologia e Endocrinologia em prescreverem dietas.
Prescrição dietoterápica como atividade exclusiva do nutricionista.
Sobre os aspectos legais distintivos da regulação da formação de médicos e de nutricionistas, a Constituição Brasileira define que é livre o exercício de qualquer profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer, compreendendo esta legalidade sob dois aspectos: legislação reguladora do ensino no País e regulamentação da profissão. As normativas dão o norte da formação de médicos e de nutricionistas, definindo o perfil e a vocação de cada profissional, entendendo-se que a graduação estabelecerá a relação entre o profissional e a profissão.
As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do curso de Medicina definem as grandes áreas de atuação do médico, sendo estas: Atenção à Saúde, Gestão em Saúde e Educação em Saúde. Na análise destas DCN, permite-se apurar que não há qualquer preocupação ou interesse com questões relacionadas diretamente à alimentação das pessoas. A prescrição dietoterápica não é parte das competências profissionais dos médicos, não se inserindo na sua formação acadêmica. O que as DCN preconizam é a formação de profissionais capacitados para tratar de doenças e de atuar em áreas de prevenção de doenças por meio das demais medidas intervencionistas como as vacinações, exames preventivos, profilaxias, etc. A vocação dos médicos não envolve atuar por meio da alimentação correta, balanceada, adequada a cada perfil, elaborar, descrever e construir habitação, vestuários e calçados adequados para os seus pacientes, mesmo que tenham influência no conforto, segurança, proteção e no não agravamento de doenças, como os sapatos adequados para diabéticos.
No contexto dos exames que se faz e nos seus propósitos, é de se afirmar que o conhecimento adquirido na formação dos médicos não vai além da compreensão sobre o tipo de alimentação que cada pessoa e em cada caso precisará, termos em que não seriam nenhum exagero afirmar que a competência dos médicos em termos de alimentação de indivíduos sadios e enfermos está limitada a definição da condição do indivíduo em alimentar-se, ou seja, a liberação da dieta. Da mesma forma que o médico pode recomendar o melhor calçado para o paciente portador de Diabetes Mellitus, mas não pode nem projetar e nem construir o calçado adequado, o médico também pode recomendar a alimentação adequada para o seu paciente, mas não pode “nem projetá-la e nem construí-la”. E assim em relação à moradia das pessoas, ao vestuário, ao ambiente residencial ou de trabalho, etc.
Diversamente do que sucede com as DCN do curso de Medicina, as do curso de Nutrição são pródigas em matérias relacionadas à Alimentação e à Nutrição e a importância dessas para a qualidade de vida das pessoas. Essas definem o perfil do egresso “capacitado a atuar, visando à segurança alimentar e à atenção dietética, em todas as áreas do conhecimento em que alimentação e Nutrição se apresentem”, assim como competências e habilidades para a atuação em um vasto campo na área de alimentação e Nutrição. Destacando-se de suas competências e habilidades: aplicar conhecimento no aproveitamento dos alimentos pelo organismo humano, na atenção dietética; promover, manter e/ou recuperar o estado nutricional de indivíduos; atuar em equipes de terapia nutricional; diagnosticar e acompanhar o estado nutricional, prescrever dietas e suplementos dietéticos para indivíduos sadios e enfermos; realizar diagnósticos e intervenções na área de alimentação e Nutrição; controle de qualidade dos alimentos; novas fórmulas ou produtos alimentares, visando sua utilização na alimentação humana. Assim, de alimentação e Nutrição quem trata é o nutricionista.
Em conformidade com as DCN de cada curso, e atendendo a disposições legais reguladoras do ensino superior, as instituições de ensino superior devem definir os currículos de cada curso de graduação. Conforme a Lei nº 9.394/1996, a educação superior tem por finalidade formar profissionais, especialmente em nível de graduação, nas diferentes áreas de conhecimento, os quais, dentre outras competências, deverão estar capacitados a prestar serviços especializados à comunidade. Prevê ainda a oferta de cursos de graduação, com prévia indicação de disciplinas, cargas horárias, equipes e qualificações de docentes, com observação as diretrizes gerais pertinentes, ou as diretrizes curriculares nacionais de cada curso de graduação.
Para demonstrar a distinção entre as formações, foram estudadas matrizes curriculares de alguns cursos de graduação de Medicina e Nutrição ofertados no Brasil. Os cursos de Medicina possuem disciplinas distribuídas em menor quantidade de unidades acadêmicas (Faculdades de Medicina, de Ciências da Saúde; Instituto de Ciências Biológicas). Dentre as 57 disciplinas previstas na Matriz Curricular, apenas algumas delas tratam de alguma questão relacionada à alimentação e Nutrição, e mesmo assim apenas de forma circunstancial e superficial – quase transversal, sem foco nos objetivos da alimentação e Nutrição. Não é necessário maior esforço para se compreender que os cursos de graduação em Medicina não têm uma vocação para as questões relacionadas à alimentação e à Nutrição das pessoas. O objetivo do curso de Medicina é o trato das doenças e, sob os aspectos fisiológico, psicológico e neurológico, das pessoas doentes, prestando, portanto, “serviços especializados à comunidade” nas áreas desses saberes (Lei n° 9.394, art. 43, VI).
Já o curso de Nutrição possui disciplinas em diversos departamentos (Departamentos de Nutrição, de Biologia Celular, de Saúde Coletiva, de Ciências Fisiológicas, de Genética e Morfologia; Faculdades de Medicina; de Agronomia e Medicina Veterinária). Estando as matérias que compõem a grade curricular do curso de graduação em Nutrição integralmente voltadas para as questões relacionadas à Alimentação e à Nutrição das pessoas, tanto sob o aspecto da (i) promoção da saúde por meio da alimentação, como da (ii) segurança alimentar e nutricional, como da (iii) composição e do preparo da alimentação. O objetivo do curso é, portanto, a capacitação de profissionais para prestarem “serviços especializados à comunidade” na busca da alimentação saudável e capaz de promover a saúde e a segurança alimentar e nutricional (Lei n° 9.394, art. 43, VI). Logo, o nutricionista é o profissional completo para tratar das questões relacionadas à alimentação e à Nutrição, das pessoas sadias e enfermas.
Ainda que a profissão de médico seja muito antiga, a definição de atribuições profissionais em lei é relativamente recente, o que não lhes retirou as competências inerentes. Disposições sobre o exercício da Medicina foram estabelecidas no Decreto nº 20.931/1932, no Decreto-Lei nº 7.955/1945, na Lei nº 3.268/1957, alterada pela Lei nº 11.000/2004, e na Lei nº 12.842/2013, que foi a responsável pela especificação de atribuições do médico (Lei do Ato Médico). Esta estabelece no seu Art. 4º as atividades privativas do médico – o parágrafo 7º estabelece que o artigo será aplicado de forma que sejam resguardas as competências próprias das profissões, inclusive a de nutricionista. Logo após a publicação da Lei nº 12.842, a formação dos médicos passou a ser regulada pelas DCN do Curso de Graduação em Medicina (Resolução CNE/CES nº 3/2014) – a Lei nº 4.024/1.961 atribuiu a Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação (CES/CNE) deliberar sobre as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação.
Já as atividades relacionadas à alimentação e Nutrição, como privilégio de profissão regulamentada, passaram a existir a partir da Lei nº 5.276/1967, revogada pela Lei nº 8.234/1991, que reorganizou a regulamentação da profissão de nutricionista, e onde foram estabelecidas como atividades privativas dos nutricionistas: a assistência e educação nutricional a coletividades ou indivíduos, sadios ou enfermos, em instituições públicas e privadas e em consultório de Nutrição e dietética, assim como a assistência dietoterápica hospitalar, ambulatorial e a nível de consultórios de Nutrição e dietética, prescrevendo, planejando, analisando, supervisionando e avaliando dietas para enfermos. A formação dos nutricionistas no âmbito da regulação do ensino é tratada nas DCN do Curso de Graduação em Nutrição (Resolução CNE/CES nº 5/2001).
Antes da legislação reguladora, as atividades privativas do nutricionista de prescrição dietoterápica, limitavam-se a “prescrição médicas”, geralmente com especificações da consistência das dietas ou com alguma restrição de nutriente específico dos tipos “dieta líquida”, “dieta pastosa”, “dieta hipossódica”, “dieta hipolipídica”, pois médicos não detalhavam dietas. Ao lado do aspecto da legalidade normativa, Lei nº 8.234/1991, as DCN do curso de Nutrição dão o suporte técnico normativo, indicando que a formação tem por objetivo dotar de “competências e habilidades específicas” para a execução das atividades privativas pelo nutricionista. No contexto normativo-legal-técnico vigente, diante da clareza da Lei e das DCN, não é sequer possível cogitar que os nutricionistas não teriam a atribuição privativa da prescrição dietoterápica para indivíduos sadios e enfermos.
Convencidos desses argumentos, durante o processo de tramitação da Lei nº 12.842, os legisladores vetaram o inciso que tornaria privativo do médico o diagnóstico nosológico e a respectiva prescrição terapêutica. Da forma original como estava escrito, o inciso impediria a continuidade de inúmeros programas do Sistema Único de Saúde, que funcionam a partir da atuação integrada dos profissionais de saúde, contando, inclusive, com a realização do diagnóstico nosológico por profissionais de outras áreas que não a médica. Vale dizer que a partir da Lei nº 12.842 o diagnóstico não é uma atribuição exclusiva dos médicos e que esta lei não impôs qualquer revogação ou derrogação na Lei nº 8.234/1991, e ainda não conferiu aos médicos atribuições (nem privativas e nem não privativas) para a prescrição dietoterápica.
Em relação às especializações, tanto na área de Medicina como na de Nutrição, estas conferem aos portadores de tais títulos maior expertise para atuação em área específica da respectiva profissão. Não se tratando de profissões novas com novas atribuições, mas de conhecimentos mais abrangentes para melhor atuação em áreas específicas da profissão decorrente da graduação. No âmbito da área de Nutrição as especializações atualmente reconhecidas pelo CFN são as indicadas na Resolução CFN nº 416/2008, alterada pela Resolução CFN nº 556/2015. Já no âmbito da Medicina as especializações se dão pela etapa de residência médica ou pela obtenção dos títulos de especialistas.
Para a realização de residência médica existem pré-requisitos, conforme apresenta a Resolução CNRM nº 2/2006. A Residência em endocrinologia possui pré-requisito em clínica médica e a de nutrologia em clínica médica ou cirurgia geral, sendo que o pré-requisito corresponde ao cumprimento de um programa de Residência Médica credenciado pela Comissão Nacional de Residência Médica. O CFM reconhece (Resolução CFM nº 1.634 alterada pela Resolução CFM nº 1.973/2011) as especialidades “endocrinologia e “metabologia” e “nutrologia”, e as áreas de atuação “Nutrição parenteral e enteral”, “Nutrição parenteral e enteral pediátrica” e “nutrologia pediátrica”.
A Residência Médica não se destina a capacitar médicos para além do curso de graduação, mas sim, para treiná-los de forma coerente com a formação da graduação, tanto que a Resolução CNRM nº 2/2006 prevê que os programas de Residência Médica serão desenvolvidos com 80% a 90% da carga horária, sob a forma de treinamento em serviço. Não tendo médicos, de quaisquer especialidades, inclusive endocrinologistas e nutrólogos, atribuição profissional para a prescrição dietoterápica.
Nenhuma especialização – e aqui vale a cautela de neste âmbito incluir, desde logo, a residência médica, pois que esta tem esse status – confere ao graduado – diplomado, egresso de curso de formação superior, uma nova modalidade profissional. Não será o fato de advogados cursarem Medicina Legal no curso de Direito, que lhes permitirá cursar especialização de forma a lhes permitir trabalhar como legistas em repartições que pesquisam as causas de morte. Ainda que tais cursos de especializações tivessem mil, duas mil ou três mil horas, e que lhes proporcionassem amplo e farto conhecimento necessário para tal mister, ainda assim lhes será vedado o exercício da atividade de legista, pois esta é própria dos médicos.
As evidências de que os cursos de especialização em Alimentação e Nutrição – proporcionados aos médicos sob as formas genéricas de especialização ou residência médica em Nutrologia – desbordam dos fins a que se propõe a Medicina, faz desses cursos condutas ilegais, pois ofendem os privilégios profissionais que a Lei n° 8.234 confere aos nutricionistas. Por conseguinte, estarão em exercício ilegal da profissão todos os médicos que exercerem atividades privativas de nutricionistas, eis que a formação por eles recebida nos cursos de especialização está eivada de ilegalidade. Caso as disciplinas de Nutrição e alimentação nesses cursos de especialização estejam sendo ministradas por profissionais não nutricionistas, aqui também estará ocorrendo mais uma transgressão à Lei n° 8.234, ainda que com a utilização de subterfúgio para mascarar o descumprimento das prerrogativas dos nutricionistas.
Conclui-se que médicos e nutricionistas têm regulamentação profissional e formação distintas: aos médicos cabe a prestação de serviços especializados à comunidade (Lei nº 9.394, art. 43, VI) no tratamento de doenças, ou de pessoas doentes; aos nutricionistas cabe a prestação de serviços relacionados à alimentação e à Nutrição, em toda sua amplitude. A formação em nível de especialização não se destina a capacitar médicos para além do curso de graduação, mas sim para treiná-los de forma coerente com a formação da graduação, não adquirindo, com a obtenção de títulos de especialista, competências para atuação em áreas diversas da graduação. Ainda, o ensino das disciplinas de Nutrição e alimentação nos cursos de especialização, inclusive em residências, é privativo dos nutricionistas, (inciso V, do art. 3°, da Lei n° 8.234/1991), haja vista que tais cursos constituem complementação da graduação em Medicina.
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