Entrevista: conselheira diz que direito à alimentação ainda é um desafio
18/05/2012
Nos últimos anos, o Brasil chegou a ultrapassar o Reino Unido, como a sexta maior economia do mundo, experimentou crescimento recorde de 7,5% (registrado em 2010, maior avanço desde 1986) e passou sem grandes danos pelas recentes crises financeiras, que abalaram vários países europeus e até mesmo a ‘inabalável’ economia norte-americana. No entanto, o mesmo Brasil que causa inveja ao mundo é também um país que ainda convive com a fome.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 65,6 milhões de brasileiros não se alimentam da maneira adequada. Desse total, 40,1 milhões convivem com a forma leve de insegurança alimentar (quando admitem que pode faltar dinheiro para comida). Outros 14,3 milhões estão na situação moderada – casos em que, no período de três meses anteriores à pesquisa, houve restrição de comida. Os demais – 11,2 milhões – passam fome (quando há privação de alimentos, classificada como insegurança alimentar grave).
Pensando justamente nessa parcela da população, o governo brasileiro reativou, em 2003, o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). Desde então, obteve grandes conquistas, como ter o direito à alimentação adequada expresso na Constituição e a criação do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Agora, novos desafios se colocam à mesa.
"Do ponto de vista legislativo, o Consea está constituído legalmente através da Lei 11.346 e tem uma função específica na Constituição. O desafio agora é a questão da efetividade do direito à alimentação adequada”, explica a advogada Mariza Rios, professora da Escola Superior Dom Helder Câmara e presidente da Rede de Ação e Informação pelo Direito a se Alimentar (Fian-Brasil), ONG internacional especializada, com status consultivo na Organização das Nações Unidas (ONU). No último mês, Mariza Rios tomou posse como Conselheira do Consea, ao lado do novo time que irá conduzir o órgão nos próximos dois anos.
Em entrevista exclusiva ao portal Dom Total, a professora Mariza Rios fala sobre a trajetória do Conselho, os atuais assuntos em pauta e avalia o primeiro mês de trabalho. Comenta ainda sobre o uso de agrotóxicos, os alimentos transgênicos e a Conferência Rio+20, que, segundo ela, corre risco de ser "“apenas mais uma conferência",” ao ampliar o leque de assuntos.
Qual a origem do Consea? Com que objetivo ele foi criado?
O Conselho foi criado em 1993, no governo de Itamar Franco, e extinto em 1995, com o início do mandato de Fernando Henrique Cardoso. Foi reativado em 2003, no governo Lula, com a proposta de pensar como o Estado poderia aumentar seu comprometimento com a qualidade de vida das pessoas, no que se refere à comida e à alimentação. O presidente Lula queria que os brasileiros tivessem comida na mesa e enxergou no Consea uma forma de tentar viabilizar essa ideia. Um dos lemas de seu governo era: “garantir a todos os brasileiros três refeições por dia”. O Consea surge então com este rosto da comida e dois objetivos principais: fazer com que a garantia do direito humano à alimentação estivesse expressa na Constituição (no bloco dos Direitos Humanos Fundamentais) e pensar um modelo de Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. No primeiro caso, não quer dizer que o direito a alimentação estivesse fora da Constituição, porém ele não estava no bloco dos Direitos Humanos Funda mentais. Em 2010, ele foi incluído por meio da Emenda Constitucional 64, no artigo 6º da Constituição. “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados”, diz o texto. Todo o envolvimento para se incluir esse artigo na Constituição partiu de uma assessoria técnica e política do Consea.
Como o Conselho é estruturado?
O Conselho é ligado diretamente à Presidência da República, com o objetivo de assessorá-la nas questões referentes ao tema Direito Humano e Alimentação Adequada. Além de ser um órgão de assessoramento, o Consea articula políticas públicas relacionadas à alimentação. Ao mesmo tempo, trabalha para monitorá-las. É constituído por pessoas que são do governo (1/3 dos membros) e pessoas da sociedade civil (2/3 dos membros). Há também os observadores, que têm voz (podem discutir e propor), mas não têm direito ao voto. As pessoas do governo são indicadas por 19 ministérios que têm alguma ligação com a temática.
O Ministério da Saúde, por exemplo, tem a ver com a questão da segurança alimentar?
Tem, então está incluído. O Consea tem a responsabilidade de trabalhar a intersetorialidade, propondo saídas para uma alimentação adequada e nutricional. Já os representantes da sociedade civil são escolhidos via instituições consagradas no país, ONGs que trabalham com o tema, universidades que fazem pesquisas na área. O cargo de presidência do Consea é, obrigatoriamente, ocupado por um representante da sociedade civil que é indicado pela Presidência da República. Neste mandato, nós, conselheiros, ousamos: mandamos um nome para a presidenta Dilma (a antropóloga Maria Emília Lisboa Pacheco). Ela então acatou a sugestão e homologou.
A senhora aponta dois nomes que se destacam no combate à fome: Josué de Castro e Herbert de Souza (Betinho). Qual a importância de ambos para o Consea e para o Brasil?
O Josué de Castro era nordestino e escreveu uma grande obra chamada “Geografia da Fome”. Nela, Josué mostra que a fome é a opressão do homem sobre outros homens, é um flagelo fabricado por nós. Essa é uma definição dele. E sabemos que Josué foi médico, político, sociólogo, exilado, morreu fora do país. Quando exilado, foi professor da Sorbonne. Muito interessante porque perguntam para ele como seria lecionar nessa instituição. E ele responde: a Sorbonne pra mim é a periferia de Recife. Lá é o laboratório onde você consegue comprovar que a fome não é um fenômeno natural. A fome tem a ver diretamente com política social, com investimento público. E Josué participou de várias lutas nacionais: pelo salário mínimo, do programa da merenda escolar. Ele defendia: “se a criança não come na escola, ela não tem possibilidade de aprender”. Participou também de um antigo programa do governo para a agricultura familiar. Para Josué, fixar o homem no campo é possibilitar a alimentação d os seus filhos. E chamava, também, atenção para os problemas ambientais, que interferem na qualidade da alimentação. Por fim, deixo uma frase dele que muito me encanta: “o que divide os homens não são as coisas, são as ideias que eles têm sobre as coisas”. Depois, vem o Herbert de Souza, o Betinho. Ele já é mais conhecido pelo povo brasileiro, esteve mais próximo, foi mais exposto pela mídia. Deixou a campanha do ‘Natal sem Fome’, que existe até hoje, trabalhou com a questão da inclusão social, concentração de renda, controle de políticas. Aliás, é bom registrar que o filho do Betinho faz parte da atual formação do Consea. Então temos Josué e Betinho, duas figuras que vêm da sociedade. Por isso essa ligação tão estreita entre o programa de governo e as propostas da sociedade civil, hoje escutada formalmente para a garantia de políticas.
Quais as principais demandas e desafios do Consea atualmente?
De 2006 pra cá, o Conselho foi regulamentado pela lei 11.346. A mesma lei cria o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan). Com a nova legislação, o Consea ganha também a tarefa de promover, de quatro em quatro anos, uma Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Essa conferência, na verdade, é muito maior que o Conselho. Ela tem um número enorme de participantes, que vem de diversos lugares, dos movimentos sociais, estados, municípios, pessoas ligadas a políticas sociais. Tem o objetivo de apontar ao governo federal as linhas e propostas com relação à segurança alimentar. A última conferência foi realizada em 2011, no governo da presidenta Dilma. O Conselho é nacional, mas já existem unidades em 20 estados brasileiros. Agora quando se refere aos municípios, o Brasil tem que dar um salto muito grande. Pouquíssimos têm o Conselho já constituído. Montes Claros, em Minas Gerais, é um deles. O Consea tem que passar por dentro da estrutura do es tado, e ao mesmo tempo, precisa da presença da sociedade civil. E essas unidades regionais e municipais possibilitam essa participação popular (na elaboração de políticas públicas que tenham a garantia da alimentação adequada). Hoje temos várias políticas que têm a interferência direta do Consea, o Bolsa Família, a aquisição de alimentos da agricultura familiar para a merenda escolar. Tudo isso sai exatamente das conferências do Consea e reflete as investigações dos brasileiros.
Qual a periodicidade das plenárias do Consea e os principais assuntos debatidos nas últimas reuniões?
As plenárias acontecem a cada 45 dias, porém, dependendo da necessidade, nos reunimos mais vezes. Em abril, por exemplo, ocorreram dois encontros: nos dias 3 e 4 e depois nos dias 17 e 18. Acabamos de dar uma recomendação acerca da inconstitucionalidade de decreto presidencial que regulamenta as comunidades tradicionais de quilombos. Elaboramos, também, parecer sobre a regulamentação das terras indígenas. Começamos ainda a discutir a reforma da lei dos resíduos sólidos, que tem a ver com o meio ambiente e envolve uma reflexão teórica muito grande. Outro tema em pauta diz respeito ao atual programa da presidenta Dilma, “país rico é país sem fome”. Nós estamos questionando o Governo no seguinte aspecto: um país rico pode ter fome? Mas não temos um Brasil desenvolvido com a fome. Não é só a riqueza, é o desenvolvimento. É o mesmo caso do livro que lançamos aqui na escola, ‘Direito à Cidade, Moradia e Equilíbrio Ambiental’. A sustentabilidade requer, por exemplo, políticas p úblicas que garantam que as famílias das favelas de Belo Horizonte não precisem gastar duas horas em um ônibus para chegar ao emprego ou à escola. As coisas podem estar mais próximas. Que o saneamento básico da favela seja tão bom quanto o da Savassi. Nosso livro mostrou que, para a Savassi, o Direito funciona de uma forma fantástica, para a favela está longe. A primeira reunião (dias 3 e 4), na verdade, foi para posse dos conselheiros e presidente, para constituição do Consea. E começamos a também fazer o planejamento das atividades. Na segunda, discutimos os temas já citados e também a conferência Rio +20, a pedido da própria presidente.
Como o Consea se posiciona com relação à Rio +20?
Não faço parte da comissão do Consea que discutirá a Rio +20, falo com base nos debates gerais ocorridos nas últimas reuniões. O governo brasileiro tem pautado, nas discussões internacionais, que a Rio +20 não deve ser uma conferência para pensar apenas o meio ambiente, separadamente. A proposta é trabalhar também o lado social e econômico. O meio ambiente tem a ver com as políticas sociais para a vida das pessoas, e para isso é preciso dinheiro. E existem críticas a esse pensamento. Há uma fala que vários países estão esvaziando a conferência, porque ela teria perdido seu objetivo principal. Por outro lado, os ambientalistas tem outra fala: ao focar nesta nova agenda, os participantes podem se esquecer de avaliar a Agenda 21. São compromissos concretos, que foram assumidos por todos os estados. Com a inclusão de temas, a avaliação desses compromissos é deixada de lado. Essa é uma grande luta que está ligada à sociedade civil. Por isso temos a conferência oficial, mas também a Cúpula dos Povos, no Aterro do Flamengo. O governo brasileiro vai fazer em um espaço próximo à Cúpula dos Povos, uma grande tenda do executivo, onde irá apresentar programas e políticas públicas que deram certo. A sociedade civil, representada dentro do próprio Consea, por sua vez, quer mostrar também as deficiências e ausências do país. Por que até hoje, no Brasil, convivemos com doenças como a dengue? Por que ainda temos crianças que morrem de fome? Esse é um debate que está sendo feito dentro do Consea: mostrar o que temos de bom, mas também nossas deficiências e possibilidades de saída.
O Consea estará tanto na conferência oficial, ao lado do Governo, como na Cúpula dos Povos, organizada pela sociedade civil. Não há conflito de interesses?
O compromisso do Consea é com o cidadão brasileiro, a sociedade faz parte da constituição do órgão inclusive para questionar o governo. O clima no conselho não é tranquilo, há um debate político muito sério. A sociedade civil tem 2/3 dos conselheiros, mas o governo é forte. Para nós, é uma responsabilidade muito grande, não podemos esquecer o lugar de onde viemos. Ao mesmo tempo, temos que dialogar dentro deste espaço e encontrar brechas para incluir as verdadeiras demandas da população. É o maior desafio para mim.