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Entrevista: Quando comer gera sofrimento, algo não vai bem

Entrevista: Quando comer gera sofrimento, algo não vai bem

26/09/2020

A nutricionista Juliana Machado explica como a Nutrição é parte do tratamento prevenção de transtornos alimentares.

Para falar sobre a contribuição do nutricionista em ações relacionadas à prevenção de transtornos alimentares e ideações suicidas, o CFN apresenta o ponto de vista não só de quem atua nessa área, mas também estuda e pesquisa o tema, que envolve equipes multiprofissionais e conhecimentos transdisciplinares. Nesta entrevista, a nutricionista Juliana Larissa Machado (CRN 6201/DF), ressalta a importância da categoria como parte das equipes dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps): “auxiliamos o tratamento de maneira positiva, já que podem ser encontrados na alimentação os disparadores do sofrimento psíquico do paciente”. Para ela, comer é um ato político, marcado pela subjetividade e que perpassa por uma série de valores morais, sociais, familiares e psíquicos de cada um. Acompanhe!

Como o/a nutricionista contribui para a prevenção de transtornos mentais que podem levar à depressão e/ou ao suicídio? Isso é possível?

Falar de prevenção de transtornos mentais é algo complexo, uma vez que não são resultantes de uma única causa ou uma única razão, mas, sim, de uma complexa interação entre fatores biológicos, genéticos, psicológicos, sociais, culturais e ambientais. Porém, a detecção precoce dos sinais de risco aumentaria a probabilidade de intervenção prévia, diminuindo o risco de evolução crônica ou sequelas graves. Em relação ao suicídio, é importante pontuar que é uma situação em que o ser humano busca uma ruptura radical para se livrar de uma situação de dor psíquica insuportável, relacionada a sentimentos de solidão e desesperança. O nutricionista é um profissional de saúde e, como todos que atuam nessa área, precisa ser capacitado e estar bem treinado para identificar os fatores de risco, proteger o indivíduo e trabalhar para os remover ou tratar.* A prevenção da depressão e/ou suicídio é feita por meio do reforço dos fatores ditos “protetores” e da diminuição dos fatores de risco, tanto em nível individual como coletivo.* A detecção deles pode ser feita por meio de entrevista clínica, escuta qualificada (ouvir efetivamente o que a pessoa diz). Uma abordagem calma, aberta, de aceitação e de não julgamento é fundamental para facilitar a comunicação.

Como os transtornos alimentares desencadeiam e/ou reforçam a cadeia cíclica de sentimentos intoleráveis ao indivíduo, levando-o a momentos de ambivalência entre viver ou morrer? Esses distúrbios são sinais de alerta que podem levar ao suicídio?

Os transtornos alimentares são graves transtornos psiquiátricos que apresentam altas taxas de mortalidade, morbidade física e psicológica, levando a uma incapacidade e redução da qualidade de vida. Os primeiros apresentam fatores predisponentes, precipitantes e mantenedores.* Possuem a maior taxa de mortalidade entre os transtornos psicológicos. Aproximadamente metade dessas mortes ocorre por suicídio. Além disso, a presença de comorbidades são comuns nessas pessoas, em que se observam transtornos do humor, transtornos ansiosos, obsessivo-compulsivos, de personalidade e abuso de substâncias psicoativas. Outra questão a ser ponderada são as diversas consequências corporais que os mecanismos de restrição ou compensatórios podem causar, levando a alterações nos sistemas gastrointestinal, cardiovascular, renal, hematológico, reprodutivo, endócrino e condições decorrentes da desnutrição, podendo chegar ao óbito se não houver intervenção adequada. A ideação suicida deve ser cuidadosamente avaliada em pessoas que apresentam distúrbios alimentares, principalmente naqueles com humor depressivo, em que se observa disfunção na transmissão da serotonina, comportamentos de automutilação e compulsão. O tratamento dos transtornos alimentares é sempre multidisciplinar e deve envolver, no mínimo, nutricionista, psicólogo e psiquiatra. Esses profissionais trabalham para melhorar a relação do paciente com a alimentação, com o seu corpo e peso, com os seus pares a fim de diminuir os comportamentos que trazem prejuízo a ele mesmo, como compulsões, métodos compensatórios, restrições alimentares.

Que avaliação faz sobre a atuação do/a nutricionista nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps)? Consegue realizar um trabalho adequado? O que seria o “mínimo ideal”?

Segundo a Portaria nº 336/2002 do Ministério da Saúde, a equipe mínima de um Caps, a depender do número de pacientes, se constitui por médicos psiquiatras ou com formação em saúde mental; profissionais de nível superior, como enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais e pedagogos; e profissionais de nível médio, como artesãos, técnicos em enfermagem, técnicos administrativos e educacionais. No Caps infantojuvenil, também são incluídos fonoaudiólogos, médicos neurologistas e pediatras. Logo, nutricionistas ainda não são vistos legalmente como parte integrante e necessária de uma equipe do Caps. Apesar de não estarmos contemplados na Equipe Multiprofissional de Atenção Especializada em Saúde Mental (Nota Técnica n° 11/2019), frequentemente integramos a equipe de ambulatórios de saúde mental, clínicas de internação e hospitais psiquiátricos, participando do processo de produção de refeições na Unidade de Alimentação e Nutrição (UAN) ou do cuidado dos usuários desse serviço. Atuamos numa perspectiva biológica, realizando orientações nutricionais e dietéticas para corrigir descompensações metabólicas provenientes do transtorno mental ou do uso de medicamentos psicotrópicos, tendo como sustentáculo a tríade nutriente-doença-prescrição dietética. Assim, necessitamos transpor o olhar biomédico, voltado apenas aos nutrientes, e considerar todas as dimensões do sujeito, incluindo a sua saúde mental, podendo atuar sob uma perspectiva ampliada, transdisciplinar, buscando entender qual significado o paciente dá à comida, ao alimento e ao corpo; o valor emocional dessas refeições; e de que forma a sua condição afeta o ato de comer e o seu próprio organismo. Dessa maneira, poderemos construir posteriormente, com o apoio de equipe multiprofissional e dele mesmo, orientações ou planos alimentares alinhados a objetivos e terapias.

Juliana Larissa Machado – CRN 6201/DF
Nutricionista da Secretaria de Saúde do Distrito Federal – atuação como preceptora do Programa de Residência Multiprofissional em Saúde Mental Infantojuvenil. Aprimoramento em Transtornos Alimentares pelo Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Programa Ambulim/USP); Especialização em Nutrição Clínica pelo Ganep/SP e em Nutrição Humana pela Universidade Federal de Lavras (Ufla). Idealizadora do projeto Caminho do Meio: ocaminhodomeio.com.br .

Saiba mais:

* Sinais que podem indicar risco de suicídio e que o/a nutricionista deve estar atento/a:
– Comportamento retraído, inabilidade para se relacionar com a família e amigos;
– Doença psiquiátrica;
– Alcoolismo;
– Ansiedade ou pânico;
– Mudança de personalidade, irritabilidade, pessimismo, depressão ou apatia;
– Mudança no hábito alimentar e de sono;
– Tentativa de suicídio anterior;
– Odiar-se, sentimento de culpa, de se sentir sem valor ou com vergonha;
– Uma perda recente importante (morte, divórcio, separação);
– Histórico familiar de suicídio;
– Desejo súbito de concluir os afazeres pessoais, organizar documentos, escrever um testamento;
– Sentimentos de solidão, impotência, desesperança;
– Cartas de despedida;
– Doença física;
– Menção repetida de morte ou suicídio.

* Como fatores protetores, podemos citar: bons vínculos afetivos; estar integrado a um grupo ou comunidade (sentimento de pertencimento); ter abertura para falar e não ser julgado sobre os problemas enfrentados; percepção otimista da vida, com razões para viver, opondo-se ao sentimento de desesperança; sentir-se produtivo; estar socialmente integrado; ter uma vigorosa e extensa rede de apoio, que englobe familiares e amigos.

Entre os fatores de riscos, podemos citar a presença de transtornos mentais, como depressão, esquizofrenia e/ou de personalidade; perdas recentes; perdas de figuras parentais na infância; dinâmica familiar conturbada; personalidade com fortes traços de impulsividade e agressividade; situações clínicas, como doenças crônicas incapacitantes, dolorosas, desfigurantes; ter acesso a meios letais; mudanças na condição socioeconômica; e já ter tentado suicídio pelo menos uma vez.

* Nesse sentindo, entende-se como fatores:
– predisponentes: genéticos (doenças psiquiátricas na família), biológicos (tendência a obesidade, por exemplo), neurológicos (alteração nos sistemas de neurotransmissão), de personalidade (baixa autoestima, perfeccionismo, rigidez ou impulsividade), familiares (dinâmicas marcadas por superproteção, rigidez excessiva, falta de afeto), socioculturais (supervalorização da magreza e grande oferta de alimentos);
– precipitantes: dieta para perda de peso, perdas ou separação; e
– mantenedores: alterações neuroendócrinas, distorção da imagem corporal, distorção cognitiva, práticas purgativas, alterações psicológicas e fatores socioculturais.

Texto de Rafael Ortega, com colaborações.